terça-feira, 22 de março de 2011

A história de um mar vazio

Big Fish Eat Little Fish – Pieter Bruegel, 1557


Não foi por acaso que Bruegel, pintor renascentista do século XVI, usou peixes em sua pintura “Peixe grande come peixe pequeno” para representar a autofagia socioeconômica da sociedade renascentista do continente europeu. Naquela época a zona costeira do Oceano Atlântico Norte era visivelmente farta em peixes de toda espécie, como mostra a obra de Bruegel. No entanto, segundo Callum Roberts, professor de conservação marinha da Universidade de York, Inglaterra e autor do livro “The unnatural history of the sea", toda essa fartura já estava condenada pela pesca comercial cuja origem não é de agora, mas sim nascida e desenvolvida rapidamente em poucas décadas na virada do primeiro para o segundo milênio, entre os séculos X e XI. Até então, a sociedade medieval consumia principalmente peixes de água doce como esturjão, trutas, salmões e enguias que migravam ao longo dos rios, seguindo seus instintos reprodutivos. Com o aumento populacional e a expansão das cidades medievais, quase sempre localizadas às margens de rios com conexão com o mar (Londres/Tâmisa, Paris/Sena), a demanda por alimentos cresceu e os campos agrícolas naturalmente começaram a substituir as florestas e matas ciliares. Com isso foi preciso muito mais água doce para irrigação e para manter girando as rodas d’água dos moinhos de milho que se multiplicavam no continente europeu. Milhares de pequenas barragens foram construídas ao longo das bacias hidrográficas da Europa pelos próprios agricultores e proprietários de terras. A erosão das matas ciliares e a diminuição do fluxo de água provocou o acúmulo gradativo de sedimentos nos leitos dos rios. Houve assoreamento de locais de desova, perda de hábitats naturais de alimentação e refúgio, além da dificuldade para migrar, uma etapa fundamental do ciclo de vida dos peixes.



Pra piorar as coisas, redes de pesca eram fixadas perpendicularmente ao curso dos rios capturando os peixes migradores em pleno período de reprodução. Sem políticas públicas para proteção dos estoques, sem manejo e regulamentação por defesos temporários ou criação de reservas de pesca, os estoques declinaram rapidamente e irreversivelmente a partir do século XI, o que levou a procura de fontes alternativas. E a única alternativa estava evidentemente... no mar.



Os primeiros registros arqueológicos de espinhas de bacalhau encontradas em poços medievais do interior da Inglaterra datam do início do século XI. Foi mais ou menos entre 1050 e 1100 que os peixes marinhos substituíram de vez os peixes de água doce, tornando-se cada vez mais frequentes na dieta da sociedade medieval. Os povos escandinavos (vikings) eram excelentes pescadores e no início passaram a fornecer peixes de alto mar para a dieta européia a preços bem baratos quando a pesca de água doce entrou em declínio. Cargas de bacalhau, halibuts, linguados de alto mar eram defumadas, secas e salgadas, e transportadas para atender os mercados da costa européia. Mesmo a aquicultura continental iniciada na França no fim do primeiro milênio para equilibrar a escassez dos estoques naturais acabou em abandono dos tanques de cultivo por conta da fartura e baixos preços dos peixes marinhos oriundos do Mar do Norte.



Ironicamente, se não fosse a descoberta do petróleo, hoje o maior vilão da contaminação atmosférica e das mudanças climáticas globais, talvez nós não veríamos mais nenhuma baleia ou foquinha sequer no Animal Planet.

No entanto, ingleses, franceses, holandeses e espanhóis bascos logo aprenderam a pescar em suas águas costeiras e mais tarde, também passaram a se aventurar em águas distantes e profundas, competindo pelo comércio da pesca no Mar do Norte. Durante séculos a prática do arrasto de fundo com redes e porta e a pesca com espinhéis era praticada por barcos a vela. Os peixes eram mantidos frescos dentro de tanques de água renovável no porão por semanas até chegarem aos mercados portuários. A pesca, portanto, era limitada às condições de vento e marés e isso pelo menos mantinha protegida as populações em águas distantes e de navegação complicada. Em meados do século XIX a Revolução Industrial permitiu a construção de motores a vapor. Na Inglaterra, as locomotivas agilizaram o transporte de peixe fresco e até mesmo vivo dentro de vagões-tanque, expandindo para o interior do país o mercado de peixe marinho, antes restrito às cidades e vilas costeiras. Ao mesmo tempo, os barcos a vapor, agora não mais restritos às condições favoráveis de vento e marés, aumentaram o esforço e a capacidade pesqueira que se estendeu ainda mais para as regiões de dificil acesso pelos barcos de pesca movidos a vela até então, ampliando as zonas de pesca.



Mas muito antes, nos séculos que seguiram o ciclo dos descobrimentos (isto é Colombo, Cabral, etc) a voracidade e expansão do comércio pesqueiro da Europa iniciou um novo ciclo no Atlântico Noroeste. Os exploradores europeus financiados pelos seus reinos e mercadores mais abastados não vieram apenas a procura de ouro, pedras preciosas e madeira, como sempre aprendemos nos cursos de História. Vieram também atrás de peixes e sobretudo, mamíferos marinhos para atender o comércio de alimento e manter acesas suas lamparinas com óleo de baleia.



A baleia foi a primeira commodity da história do comércio global. A carne desses animais era salgada para consumo; a banha era usada na fritura e conservação dos alimentos; as barbatanas bucais eram usadas em armação de vestidos e espartilhos, que moldavam os corpos femininos asfixiados da corte européia; os intestinos davam o âmbar, o principal fixador de perfumes; toda a iluminação pública e doméstica nas capitais e vilas da Europa era feita a base de óleo de mamíferos marinhos, bem como a lubrificação de ferramentas e máquinas da Revolução Industrial. Ironicamente, se não fosse a descoberta do petróleo, hoje o maior vilão da contaminação atmosférica e das mudanças climáticas globais, talvez nós não veríamos mais nenhuma baleia ou foquinha sequer no Animal Planet. Só os seus esqueletos e pinturas expostas nos museus de história natural.



A caça baleeira começou nos séculos IX e X nos mares frios da Europa e da Escandinávia. Inicialmente era praticada somente na costa, tal era a abundância de baleias nas águas do Mar do Norte e a facilidade em avistá-las. O declínio das populações costeiras obrigou a caça a se aventurar em águas mais distantes e profundas, usando embarcações baleeiras adaptadas. Por volta do século XVI, quando o Brasil tinha acabado de ser descoberto, as baleias já eram raras nos mares da Europa e Escandinávia. As tentativas de descoberta de uma passagem pelo Oceano Ártico para acelerar o comércio entre a Europa e a China, na época o maior mercado de especiarias, sedas, peles e tudo o que interessava a sociedade européia de então, trouxe a notícia da fartura nos mares do Novo Mundo. Registros dos exploradores da época mencionam milhares de baleias em baías e fiordes do Atlântico Noroeste e do Oceano Ártico canadense, onde se concentravam para reproduzir.



Centenas de barcos transportando hordas de caçadores para a Terra Nova chegavam da Europa entre os meses de abril e maio em busca de carne e banha de baleias e de pequenos mamíferos de fácil captura. Acampamentos provisórios de processamento de óleo de baleia na região, outrora restritos aos povoados vikings na Groenlândia, se multiplicaram na América do Norte ao lado das colônias de reprodução. Milhões de baleias e focas foram caçadas e suas banhas, couro e carne foram transportadas para a Europa entre os séculos XVI e XIX.



Além das baleias, a voracidade do comércio predador não perdeu tempo e encontrou novas alternativas de caça de mamíferos marinhos em ilhas oceânicas do Pacífico Norte e Sul, onde centenas de milhares de focas peleteiras se agrupavam nos períodos reprodutivos. Mais de 3 milhões de focas peleteiras foram mortas em menos de 10 anos entre 1790 e 1800 por caçadores russos e americanos para retirar a pele que eram vendidas ao preço equivalente a quase US$100 dólares por unidade para a alta costura do império chinês. Essa foi a herança do que fazem ainda hoje indústrias de pesca canadense e norueguesas que caçam cerca de 300 mil bebezinhos brancos de focas do Ártico para fazer casacos de pele (ver o artigo “E agora Brigite” nesse mesmo site).



As morsas do Ártico, aquelas focas bigodudas e dentuças, já eram caçadas não apenas pela banha e carne. O marfim das morsas era uma alternativa do marfim de elefante cujo comércio entre o norte da África e a Europa havia declinado vertiginosamente com a queda do Império Romano. O couro de morsa era considerado o melhor para fazer cordas e selas de cavalos. Uma boa morsa gorducha era “descascada” espiralmente como uma laranja, podendo render uma tira fina e continua de couro de quase 30 metros. No século XIX o couro de morsa era usado como correias do maquinário da Revolução Industrial e até como ponteira de tacos de sinuca.



Pior foi o destino da “vaca marinha”, um paquiderme herbívoro comedor de algas, do mesmo grupo do nosso peixe boi, só que gigantesco, chegando a medir 9 metros e pesar 10 toneladas (a “Steller sea cow”), quase do tamanho de uma baleia. Um animal dócil e pouco ágil, como uma vaca aquática lenta e abobada, fácil de ser capturada. Em 1741 o explorador russo Vitor Bering e sua tripulação faminta e atacada pelo escorbuto (falta de vitamina C) chegaram as ilhas Commander próxima da costa oeste da Rússia. Após meses de exploração pelo Pacifico Norte em busca de uma passagem para o Oceano Atlântico, mais tarde batizada de Estreito de Bering, encontraram nessas ilhas uma população de vacas marinhas. Há séculos o animal já vinha sendo capturada por nativos que habitavam as costas do Pacifico norte desde o Japão até a Califórnia. Hoje argumenta-se que além da caça, as florestas de algas kelps, seu habitat natural e principal fonte de alimento, foram roídas e dizimadas por ouriços do mar que se proliferavam aos milhões devido a caça de seu predador natural, a lontra do mar, pelos mesmos nativos. Portanto, devido ao efeito conjunto da pressão pela caça e a escassez de alimento, já estavam quase extintas em meados do século XVIII. Havia sobrado uma única população nas Ilhas Commander que, infelizmente, estavam na rota de Bering e sua tripulação faminta. A notícia da descoberta de uma animal cuja gordura produzia um óleo combustível que não fumaceava e nem fedia tanto quanto o óleo de baleia (i.é., era a gasolina “premium” da época) se espalhou entre os caçadores europeus que todos os anos caçavam centenas desses animais. Em 27 anos extinguiram a única colônia remanescente após séculos de declínio da população. Me arrisco a dizer que a vaca do mar talvez tenha sido a primeira vítima da extinção da megafauna marinha pelo homem.



Não só mamíferos e grandes peixes eram alvos da pesca no Novo Mundo. As ilhas caribeñas, como as Tortugas fantasiadas no filme Piratas do Caribe, não eram apenas reduto de corsários e condenados que lá concentravam seus saques e preparavam novos ataques aos navios mercantes. Também eram verdadeiros açougues de tartarugas. Todos os anos centenas de tartarugas eram capturadas nas praias e mantidas em currais improvisados nos porões dos navios por várias semanas sem água e alimento, como fonte de carne fresca durante as jornadas de pilhagem e travessias oceânicas. Além disso, os primeiros colonizadores das ilhas da América Central não tinham muita infraestrutura agrícola e dependiam da caça e pesca. Na Jamaica haviam cerca de 150 empregos dedicados exclusivamente à caça e comércio de tartarugas, geralmente fêmeas desovando. Entre 1688 e 1730 foram mortas cerca de 30 mil tartarugas todos os anos nas ilhas jamaicanas e exportadas para todas as colônias caribenhas. Cientistas atuais, com base em modelos ecológicos que consideram a capacidade suporte do ecossistema caribeño, estimaram que havia entre 50 e 100 milhões de tartarugas desovando no mar do Caribe antes da conquista pelos ingleses no século XVIII. Nas ilhas do Pacífico a mesma história se repetiu. Nas Galápagos, por exemplo, as tartarugas terrestres já estavam ameaçadas de extinção quando Darwin lá chegou a tempo de usá-las como um dos exemplos de sua teoria da evolução.



Em meados do século XVII o comércio global de pesca e caça marítima descobriu os estoques intocados do Atlântico Sul, especificamente nos mares frios da Patagônia. Enquanto os portugueses concentravam suas atividades de exploração de madeira, ouro, pedras preciosas e escravos africanos no Brasil Colônia, caçadores ingleses, holandeses passavam ao largo com um único objetivo: pescar e caçar mamíferos nos mares temperados do Atlântico Sul, espalhando-se rapidamente na direção das ilhas do Pacífico Sul. Os estoques mais remotos, o último a ser explorado já na segunda metade do século XIX devido a dificuldade de acesso, foram as focas do Oceano Antártico, porque os das ilhas do Pacífico e do Ártico já tinha ido pro pau há muito tempo.



“O que exatamente estamos protegendo com os movimentos conservacionistas, os defesos, as limitações de quotas, a criação de AMPs e outras medidas paliativas de gestão pesqueira?”

Não se iludam que o homem medieval e renascentista não era capazes de provocar os mesmos impactos ambientais que fazermos hoje. Peixes e a maioria da megafauna marinha vêem sendo caçados e ameaçados de extinção em função dessa história de exploração e comércio global séculos atrás, e não apenas nos dias de hoje como se pensa. Nossos tatara-tatara-tataravós não dispunham da tecnologia de sonar, barcos fábricas, redes gigantescas e os espinhéis quilométricos que temos hoje. Mesmo assim, provocaram o maior declínio de estoques globais de recursos vivos marinhos que se tem notícia. Nossa visão de que a indústria moderna da pesca oceânica foi capaz de exterminar nos últimos 100 anos cerca de 90% dos estoques pesqueiros mundiais é destorcida. Na verdade acabou com 90% do que havia sobrado no início do século XX após o início da pesca comercial na Idade Média. Hoje quando vemos uma tartaruga nadando ou algumas poucas baleias em Abrolhos, fazemos um auê!! e gastamos todos nossos megabytes nas fotos de um ou outro rabo de jubarte.



A capacidade de predação do ser homem é insuperável. Após ter acabado de exterminar a maior parte da megafauna terrestre lá atrás no período neolítico, chegara a vez da megafauna marinha. Nos 1000 anos entre a Idade Média e o começo do século XIX a população mundial de baleias, focas, morsas e elefantes marinhos já estava reduzida a cerca de 10% dos estoques anteriores ao “antropoceno”.



Portanto, eu cada vez mais me pergunto: o que exatamente estamos protegendo com os movimentos conservacionistas, os defesos, as limitações de quotas, a criação de AMPs e outras medidas paliativas de gestão pesqueira? O que sobrou depois de séculos de exploração nos Oceanos de todo o planeta? Se for assim, precisamos fazer mais do que apenas lutar pela conservação da vida marinha que restou. Precisamos recuperar pelo menos parte do que já se perdeu e resgatar um pouco da biodiversidade marinha que nos foi legada pela natureza. Esse é o nosso maior desafio.

Por: Frederico Brandini é oceanógrafo
http://www.oeco.com.br/

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